diff --git a/scripts/anonimizador/anon.py b/scripts/anonimizador/anon.py new file mode 100644 index 000000000..5bd80a790 --- /dev/null +++ b/scripts/anonimizador/anon.py @@ -0,0 +1,75 @@ +import random +import re +from collections import defaultdict +from string import digits + +from django.apps import apps +from django.db.models.fields import CharField, TextField + +from materia.models import Orgao, Origem +from norma.models import AssuntoNorma +from parlamentares.models import Municipio, NivelInstrucao, Partido +from sapl.settings import SAPL_APPS + +sapl_appconfs = [apps.get_app_config(n) for n in SAPL_APPS] +models = [model for app in sapl_appconfs for model in app.get_models()] + +excluidos = Origem, Orgao, AssuntoNorma, Partido, NivelInstrucao, Municipio, + +models = [m for m in models + if 'tipo' not in m._meta.model_name and + 'cargo' not in m._meta.model_name and + 'status' not in m._meta.model_name and + m not in excluidos and + m._meta.app_label not in ['compilacao', 'base']] + +nomes = [n.strip() for n in open('nomes.txt').readlines()] + +conteudo = open('paragrafos.txt').read() +pars_list = [p.replace('"', '') for p in re.split('\n\n+', conteudo.strip())] +pars = defaultdict(list) +for p in pars_list: + pars[round(len(p) / 10)].append(p) +pars = dict(pars) + + +def change_digits(val): + return ''.join(random.choice(digits) if a in digits else a for a in val) + + +def random_text(val): + if not val or not val.strip(): + return val + subpars = pars[min(pars.keys(), + key=lambda x: abs(x - round(len(val) / 10)))] + return random.choice(subpars) + + +def stub(f, obj): + val = getattr(obj, f.name) + if isinstance(f, CharField): + if 'mail' in f.name: + return 'bla@bla.com' + elif 'nome' in f.name: + limite = f.max_length or 100000000 + return random.choice(nomes)[:limite] + elif f.choices: + return val + else: + return change_digits(val) + if isinstance(f, TextField): + return random_text(val) + return val + + +def anon(model): + print('--------- %s ---------' % model) + for obj in model.objects.all(): + for f in model._meta.fields: + setattr(obj, f.name, stub(f, obj)) + obj.save() + + +def anon_todos(): + for m in models: + anon(m) diff --git a/scripts/anonimizador/nomes.txt b/scripts/anonimizador/nomes.txt new file mode 100644 index 000000000..50c055cdb --- /dev/null +++ b/scripts/anonimizador/nomes.txt @@ -0,0 +1,93 @@ +Marquês de Paraná +Eusébio de Queirós +Barão de Mauá +José Clemente Pereira +Visconde de Uruguai +Visconde de Abaeté +Marquês de Olinda +Visconde de Itaboraí +Marquês de Monte Alegre +Marquês de Caxias +Marquês de Abrantes +Conde de Irajá +Bernardo de Sousa Franco +Cândido Batista de Oliveira +Marquês de Valença +Visconde de Maranguape +Visconde de Sapucaí +Visconde de Cairu +José Bonifácio de Andrada e Silva +Visconde de Caravelas +D. Pedro II +Luís Pedreira do Couto Ferraz +José Maria da Silva Paranhos +Gabriel José Rodrigues dos Santos +Barão de Iguaraçu +Marquês de Baependi +José Martiniano de Alencar +Evaristo Ferreira da Veiga +A. C. R. de Andrada Machado e Silva +João da Silva Carrão +Conde de Santa Cruz, Arcebispo da Bahia +Fr. Francisco do Monte Alverne +Jerônimo Francisco Coelho +Francisco de Lima e Silva +Visconde do Rio Bonito +Nicolau Pereira de Campos Vergueiro +Bernardo Pereira de Vasconcelos +Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos +Sérgio Teixeira de Macedo +Manuel Felizardo de Sousa e Melo +José Tomás Nabuco de Araújo +Januário da Cunha Barbosa +Marquês de Paranaguá +Bispo de Anemúria +Teresa Cristina Maria + + + + +Pedro de Alcântara Bellegarde +Martim Francisco Ribeiro de Andrada +Inácio Marcondes de Oliveira Cabral +Dom Pedro I +João Crisóstomo Calado +Marquês de Inhambupe +José Antônio Saraiva +Marquês de Barbacena +Barão de Caçapava +José Pinheiro de Vasconcelos +Sebastião do Rego Barros +Miguel de Frias e Vasconcelos +Visconde de Jequitinhonha +João Paulo dos Santos Barreto +Marquês de Caravelas +Marquês de Lajes +Marquês de Maricá +D. Isabel e D. Leopoldina +Visconde de S. Leopoldo +Rafael Tobias de Aguiar +Barão de Muritiba +Pedro Ferreira de Oliveira +João Manuel Pereira da Silva +Marquês de S. João de Palma +José Joaquim da Rocha +José Inácio Silveira da Mota +Alexandre Joaquim de Siqueira +José Maria da Silva Bitancourt +Francisco Gomes de Campos +Joaquim Marcelino de Brito +Diogo Antônio Feijó +José Antônio Marinho +Ângelo Moniz da Silva Ferraz +Francisco de Paula Sousa e Melo +Barão da Vitória +Joaquim José Inácio +Barão de Sumi +Visconde de Pedra Branca +D. Manuel de Assis Mascarenhas +José Bento Leite Ferreira de Melo +Teófilo Benedito Otoni +D. Manuel Joaquim da Silveira +Visconde de Sepetiba +Francisco de Paula Negreiros Saião Lobato diff --git a/scripts/anonimizador/paragrafos.txt b/scripts/anonimizador/paragrafos.txt new file mode 100644 index 000000000..f5e50cd9c --- /dev/null +++ b/scripts/anonimizador/paragrafos.txt @@ -0,0 +1,629 @@ + +"O coração, se pudesse pensar, pararia." +"Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do +abismo. Não sei onde me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma +prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, +porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao +que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao +que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até +mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e +canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero. +Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que +me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro +dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se +não o lerem, nem se entretiverem, será bem também." + + + +"Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como +sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a +substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de +milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança +sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo +mais porque vivo maior." + + + +"Prefiro o Vasques homem meu patrão, que é mais tratável, nas horas difíceis, que todos os +patrões abstractos do mundo." +"Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros de outros em que escrituro, pelo +tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sérgio, que faz guias de remessa um +pouco para além de mim. Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar ou talvez, também, porque nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o +dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como à grande indiferença das +estrelas." + + + +"Vejo-o [o patrão Vasques], vejo os seus gestos de vagar enérgico, os seus olhos a pensar para +dentro coisas de fora, recebo a perturbação da sua ocasião em que lhe não agrado, e a minha +alma alegra-se com o seu sorriso, um sorriso amplo e humano, como o aplauso de uma +multidão." + + + +"Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monótona e necessária, mandante e +desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele é tudo para mim, por +fora, porque a Vida é tudo para mim por fora. +E, se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo +andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, +que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida +sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente. Sim, +esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos +os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução." + + + +"Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos +gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; +mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi +a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas +vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me +respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com +que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a +narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância - irmãos +siameses que não estão pegados." + + + +"Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem +importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto." +"De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a +compreensão profunda de estar sentindo...Uma inteligência aguda para me destruir, e um +poder de sonho sôfrego de me entreter...Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, +como a um filho vivo..." + + + +"Tenho fome da extensão do tempo, e quero ser eu sem condições." + + + +"Uns governam o mundo, outros são o mundo." + + + +"Há em olhos humanos, ainda que litográficos, uma coisa terrível: o aviso inevitável da +consciência, o grito clandestino de haver alma." +"Sinto um frio de doença súbita na alma" + + + +"Tinha-me levantado cedo e tardava em preparar-me para existir." +"Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia desconhecida, um +desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo. E quanto +me debrucei da janela altíssima, sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente +um daqueles trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, +mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamentamente." + + + +"São as pessoas que habitualmente me cercam, são as almas que, desconhecendo-me, todos os +dias me conhecem com o convívio e a fala, que me põem na garganta do espírito o nó salivar +do desgosto físico. É a sordidez monótona da sua vida, paralela à exterioridade da minha, é a +sua consciência íntima de serem meus semelhantes, que me veste o traje de forçado, me dá a +cela de penitenciário, me faz apócrifo e mendigo." + + + +"Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da +minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o +que sente e o que vê." +"E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir." + + + +"A humanidade tem medo da morte, mas incertamente." + + + +"E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, não sei o que penso nem o que sou." +"Verifico que, tantas vezes alegre, tantas vezes contente, estou sempre triste." +"Não vejo, sem pensar." +"Não há sossego - e, ai de mim!, nem sequer há desejo de o ter." + + + +"Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de +roupa - não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio +por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio. +Há muitos em quem o desasseio não é uma disposição da vontade, mas um encolher de +ombros da inteligência. E há muitos em quem o apagado e o mesmo da vida não é uma forma +de a quererem, ou uma natural conformação com o não tê-la querido, mas um apagamento da +inteligência de si mesmos, uma ironia automática do conhecimento. +Há porcos que repugnam a sua própria porcaria, mas se não afastam dela, por aquele mesmo +extremo de um sentimento , pelo qual o apavorado se não afasta do perigo. Há porcos de +destino, como eu, que se não afastam da banalidade quotidiana por essa mesma atracção da +própria impotência. São aves fascinadas pela ausência de serpente; moscas que pairam nos +troncos sem ver nada, até chegarem ao alcance viscoso da língua do camaleão. +Assim passeio lentamente a minha inconsciência consciente, no meu tronco de árvore do +usual. Assim passei o meu destino que anda, pois eu não ando; o meu tempo que segue, pois eu +não sigo." + + + +"Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas +frases simples de Caeiro, na referência natural do que resulta do pequeno tamanho de sua +aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por +isso a aldeia é maior que a cidade... + +"Porque eu sou do tamanho do que vejo +E não do tamanho da minha altura." +Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda +a metafísica que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler, chego à minha janela +sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado +cuja vibração me estremece no corpo todo. +"Sou do tamanho do que vejo!"Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus +nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. "Sou do +tamanho do que vejo!" Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas até +às altas estrelas que se reflectem nele e, assim, em certo modo, ali estão. +E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com uma +segurança que me dá vontade de morrer cantando. "Sou do tamanho do que vejo!" E o vago +luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro do horizonte. +Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvageria ignorada, de dizer +palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade larga aos grandes espaços da +matéria vazia. +Mas recolho-me e abrando-me. "Sou do tamanho do que vejo!" E a frase fica sendo-me a +alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a +cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer." + + + +"A solidão desola-me; a companhia oprime-me. A presença de outra pessoa descaminha-me +os pensamentos; sonho a sua presença com uma distracção especial, que toda a minha atenção +analítica não consegue definir." + + + +"O isolamento talhou-me à sua imagem e semelhança. A presença de outra pesoa - de uma só +pessoa que seja - atrasa-me imediatamente o pensamento, e, ao passo que no homem normal o +contacto com outrem é um estímulo para a expressão e para o dito, em mim esse contacto é +um contra-estímulo." +"Os meus hábitos são da solidão, que não dos homens"; não sei se foi Rousseau, se Senancour, +o que disse isto. Mas foi qualquer espírito da minha espécie - não poderia talvez dizer da +minha raça." + + + +"O vento levantou-se...Primeiro era como a voz de um vácuo...um soprar no espaço para +dentro de um buraco, uma falta no silêncio do ar. Depois ergueu-se um soluço, um soluço do +fundo do mundo, o sentir-se que tremiam vidraças e que era realmente vento. Depois soou +mais alto, urro surdo, um chocar sem ser ante o aumentar nocturno, um ranger de coisas, um +cair de bocados, um átomo de fim do mundo." + + + +"Os Deuses, se são justos em sua injustiça, nos conservem os sonhos ainda quando sejam +impossíveis, e nos dêem bons sonhos, ainda que sejam baixos." + + + +"Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros +com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas... +Releio?Menti! Não ouso reler. Não posso reler. De que me serve reler? O que está ali é outro. +Já não compreendo nada..." + + + +"Ah, mas como eu desejaria lançar ao menos numa alma alguma coisa de veneno, de +desassossego e de inquietação. Isso consolarme-ia um pouco da nulidade de acção em que +vivo. Perverter seria o fim da minha vida. Mas vibra alguma alma com as minhas palavras? +Ouve-as alguém que não só eu? + + + +"Dói-me qualquer sentimento que desconheço; falta-me qualquer argumento não sei sobre o +quê; não tenho vontade nos nervos. Estou triste abaixo da consciência. E escrevo estas linhas, +realmente mal-notadas, não para dizer isto, nem para dizer qualquer coisa, mas para dar um +trabalho à minha desatenção. Vou enchendo lentamente, a traços moles de lápis rombo - que +não tenho sentimentalidade para aparar - , o papel branco de embrulho de sanduíches, que +me forneceram no café, porque eu não precisava de melhor e qualquer servia, desde que fosse +branco. E dou-me por satisfeito." + + + +"A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência." + + + +"Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência +com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento. +Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir +não é mais que o alimento de pensar." + + + +"Correr riscos reais, além de me apavorar, não é por medo que eu sinta excessivamente perturba-me a perfeita atenção às minhas sensações, o que me incomoda e despersonaliza. +Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos perigos." + + + +"Leve, como uma coisa que começasse, a maresia da brisa pairou sobre o Tejo e espalhou-se +sujamente pelos princípios da Baixa. Nauseava frescamente, num torpor frio de mar morto. +Senti a vida no estômago, e o olfacto tornou-se-me uma coisa por detrás dos olhos. Altas, +pousavam em nada nuvens ralas, rolos, num cinzento a desmoronar-se para branco falso. A +atmosfera era de uma ameaça de céu cobarde, como a de uma trovoada inaudível, feita de ar +somente. +Havia estagnação no próprio voo das gaivotas; pareciam coisas mais leves que o ar, deixadas +nele por alguém. Nada abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o ar refrescava +intermitentemente. +Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta +hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, +para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar +em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro. +Tanta inconsequência em querer bastar-me! Tanta consciência sarcástica das sensações +supostas! Tanto enredo da alma com as sensações, dos pensamentos com o ar e o rio, para +dizer que me dói a vida no olfacto e na consciência, para não saber dizer, como na frase +simples e ampla do livro de Job, "Minha alma está cansada de minha vida!" + + + +INTERVALO DOLOROSO +"Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha +dor. +Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque de quinta, com um dossel +rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos +sombrios da pouca água. +Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a +vida, eu não posso lhe tocar. +Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço? e quem é triste não pode +esforçar-se. Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria +abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me. +Quantas vezes me punge o não ser o manobrante daquele carro, o cocheiro daquele trem! +qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de +eu querê-la e se me penetra até de alheia! +Eu não teria o horror à vida como a uma Coisa. A noção da vida como um Todo não me +esmagaria os ombros do pensamento. +Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda chuva contra um raio. +Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gestos e actos. +Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de +angústia. +Mesmo eu , o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas +aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de quem me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a +carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhêce-las durezas. Todos os +pesos visíveis de objectos me pesam por a alma dentro. +A minha vida é como se me batessem com ela." + + + +"Meditei hoje, num intervalo de sentir, na forma de prosa de que uso. Em verdade, como +escrevo? Tive, como muitos têm tido, a vontade pervertida de querer ter um sistema e uma +norma. É certo que escrevi antes da norma e do sistema; nisso, porém, não sou diferente dos +outros. +Analisando-me à tarde, descubro que o meu sistemade estilo assenta em dois princípios, e +imediatamente, e à boa maneira dos bons clássicos, erijo esses dois princípios em fundamentos +gerais de todo estilo: dizer o que se sente exactamente como se sente - claramente, se é claro; +obscuramente, se é obscuro; confusamente, se é confuso - ; compreender que a gramática é +um instrumento, e não uma lei." + + + +"Fazer qualquer coisa completa, inteira, seja boa ou seja má - e, se nunca é inteiramente boa, +muitas vezes não é inteiramente má - , sim, fazer uma coisa completa causa-me, talvez, mais +inveja do que outro qualquer sentimento. É como um filho: é imperfeita como todo o ente +humano, mas é nossa como os filhos são. +E eu, cujo espírito de crítica própria me não permite senão que veja os defeitos, as falhas, eu, +que não ouso escrever mais que trechos, bocados, excertos do inexistente, eu mesmo, no pouco +que escrevo, sou imperfeito também. Mais valeram pois, ou a obra completa, ainda que má, +que em todo o caso é obra; ou a ausência de palavras, o silêncio inteiro da alma que se +reconhece incapa de agir." + + + +"Sumir-me-ei entra a névoa, como um estrangeiro a tudo, ilha humana desprendida do sonho +do mar e navio com ser supérfluo à tona de tudo." + + + +"Na falta de saber, escrevo; e uso os grandes termos da Verdade alheios conforme as +exigências da emoção. Se a emoção é clara e fatal, falo, naturalmente, dos deuses e assim a +enquadro numa consciência do mundo múltiplo. Se a emoção é profunda, falo, naturalmente, +de Deus, e assim a engasto numa consciência una. Se a emoção é um pensamento, falo, +naturalmente, do Destino, e assim a encosto à parede." + + + +"Quando ponho de parte os meus artifícios e arrumo a um canto, com um cuidado cheio de +carinho - com vontade de lhes dar beijos - os meus brinquedos, as palavras, as imagens, as +frases - fico tão pequeno e inofensivo, tão só num quarto tão grande e tão triste, tão +profundamente triste!... +Afinal eu quem sou, quando não brinco? Um pobre órfão abandonado nas ruas das sensações, +tiritando de frio às esquinas da Realidade, tendo que dormir nos degraus da Tristeza e comer +o pão dado da Fantasia. De meu pai sei o nome; disseram-me que se chamava Deus, mas o +nome não me dá idéia de nada. Ás vezes, na noite, quando me sinto só, chamo por ele e choro, +e faço-me uma idéia dele a que possa amar...Mas depois penso que o não conheço, que talvez +ele não seja assim, que talvez seja nunca esse o pai da minha alma... +Quando acabará isso tudo, estas ruas onde arrasto a minha miséria, e estes degraus onde +encolho o meu frio e sinto as mãos da noite por entre os meus farrapos? Se um dia Deus me +viesse buscar e me levasse para a sua casa e me desse calor e afeição...Ás vezes penso isto e +choro com alegria a pensar que o posso pensar...Mas o vento arrasta-se pela rua fora e as + +folhas caem no passeio...Ergo os olhos e vejo as estrelas que não têm sentido nenhum...E de +tudo isto fico apenas eu, uma pobre criança abandonada, que nenhum Amor quis par seu +filho adoptivo, nem nehuma Amizade para seu companheiro de brinquedos. +Tenho frio de mais. Estou tão cansado no meu abandono. Vai buscar, ó Vento, a minha Mãe. +Leva-me na Noite para a casa que não conheci...Torna a dar-me, ó Silêncio imenso, a minha +ama e o meu berço e a minha canção com que eu dormia..." + + + +"O sonhador não é superior ao homem activo porque o sonho seja superior à realidade. A +superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que o +sonhador extrai da vidaum prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de +acção. Em melhores e muito mais directas palavras, o sonhador é que é o homem de acção. +Sendo a vida essencialmente um estado mental, e tudo, quanto fazemos ou pensamos, válido +para nós na proporção em que o pensamos válido, depende de nós a valorização. O sonhador +é um emissor de notas, e as notas que emite correm na cidade do seu espírito do mesmo modo +que as da realidade." + + + +"Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram!" + + + +"Em mim foi sempre menor a intensidade das sensações que a intensidade da consciência +delas. Sofri sempre mais com a consciência de estar sofrendo que com o sofrimento de que +tinha consciência. +A vida das minhas emoções mudou-se, de origem, para as salas do pensamento, e ali vivi +sempre mais amplamente o conhecimento emotivo da vida. +E como o pensamento, quando alberga a emoção, se torna mais exigente que ela, o regime de +consciência, em que passei a vive o que sentia, tornava-se mais quotidiana, mais epidérmica, +tornava-se mais titilante a maneira como sentia." + + + +"Somos quem não somos e a vida é pronta e triste." +"Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam em nós, na noite de sermos, pelas +praias que nos sentimos nos alagamentos da emoção! Aquilo que se perdeu, aquilo que se +deveria ter querido, aquilo que se obteve e satisfez por erro, o que amamamos e perdemos e, +depois de perder, vimos, amando por tê-lo perdido, que o não havíamos amado; o que +julgávamos que pensávamos quando sentíamos; o que era uma memória e críamos que era +uma emoção; e o mar todo, vindo lá, rumoroso e fresco, do grande fundo de toda a noite, a +estuar fino na praia, no decurso nocturno do meu passeio à beira-mar ... +Quem sabe sequer o que pensa ou o que deseja? Quem sabe o que é para si-mesmo?" + + + +"Tão supérfluo tudo! Nós e o mundo e o mistério de ambos." + + + +" O pensamento colectivo é estupído porque é colectivo: nada passa as barreiras do colectivo +sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo. +Na mocidade somos dois: há em nós a coexistência da nossa inteligência própria, que pode ser +grande, e a da estupidez da nossa inexperiência, que forma uma segunda inteligência inferior. +Só quando chegamos a outra idade se dá em nós a unificação. Daí a acção sempre fruste da +juventude - devida, não à sua inexperiência, mas à sua não-unidade." + + + +" Sou daquelas almas que as mulheres dizem que amam, e nunca reconhecem quando +encontram, daquelas que, se elas as reconhecessem, mesmo assim não as reconheceriam. Sofro +a delicadeza dos meus sentimentos com uma atenção desdenhosa. Tenho todas as qualidades, +pelas quais são admirados os poeta românticos, mesmo aquela falta dessas qualidades, pela +qual se é realmente poeta romântico. Encontro-me descrito (em parte) em vários romances +como protagonista de vários enredos; mas o essencial da minha vida, como da minha alma, é +não ser nunca protagonista." +"O cais, a tarde, a maresia entram todos, e entram juntos, na composição da minha angústia. +As flautas dos pastores impossíveis não são mais suaves que o não haver aqui flautas e isso +lembrar-mas." + + + +" Cada qual tem o seu álcool. Tenho álcool bastante em existir. Bêbado de me sentir, vagueio +e ando certo. Se são horas, recolho ao escritório como qualquer outro. Se não são horas, vou +até o rio fitar o rio, como qualquer outro. Sou igual. E por detrás de isso, céu meu, constelome às escondidas e tenho o meu infinito." + + + +" Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um +conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos. +Isto é verdade em toda a escala do amor. No amos sexual buscamos um prazer nosso por +intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso +dado por intermédio de uma ideia nossa. O onanista é objecto, mas, em exacta verdade, o +onanista é a perfeita expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana. +As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as +palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No +próprio ato em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois «amo-te» ou pensamno e sentem-no por troca, e cada um quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até, +porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstracta de impressões que constitui a +actividade da alma." +"É de compreender que sobretudo nos cansamos. Viver é não pensar." + + + +"Para o esteta, as tragédias são coisas interessantes de observar, mas incomodas de sofrer. O +próprio cultivo da imaginação é prejudicado pelo da vida. Reina quem não está entre os +vulgares. +Afinal, isto bem me contentaria se eu conseguissepersuadir-me que esta teoria não é o que é, +um complexo barulho que faço aos ouvidos da minha inteligência, quase para ela não +perceber que, no fundo, não há senão a minha timidez, a minha incompetência para a vida." + + + +ESTÉTICA DO ARTIFÍCIO +" A vida prejudica a expressão da vida. Se eu tivesse um grande amor nunca o poderia contar. +Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente +existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim. Vivo-me +esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia ao meu + +ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico +empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não +sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir, é - crede-me bem - para não perturbar +as linhas feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu +cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não +posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares +frescos e das luzes francas - onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada +beleza." + + + +"Assim organizar a nossa vida que ela seja para os outros um mistério, que quem melhor nos +conheça, apenas nos desconheça de mais perto que os outros. Eu assim talhei a minha vida, +quase que sem pensar nisso, mas tanta arte institiva pus em fazê-lo que para mim próprio me +tornei uma não de todo clara e nítida individualidade minha." + + + +"A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida." + + + +"A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa. Dizem que não há +nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a +mão sem literatura, o gesto, ascendemente enrolado em ordem, com que aquela figura +abstracta das molas ou de certas escadas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos +lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificuldade uma espiral: é um círculo que +sobe sem nunca conseguir acabar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim, +porque supõe que definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso +dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um circulo virtual que se desdobra a subir sem +nunca se realizar: Mas não, a definição ainda é abstracta. Buscarei o concreto, e tudo será +visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma. +Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda +quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal, na sua realidade directa; os campos, +as cidades, as ideias, sao coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa complexa sensação de +nós mesmos. Sâo intransmissíveis todas as impressões salvo se as tornarmos literárias. As +crianças são muito literárias porque dizem como sentem e não como deve sentir quem sente +segundo outra pessoa. Uma criança, que uma vez ouvi, disse, querendo dizer que estava à +beira de chorar, não «Tenho vontade de chorar», que é como diria um adulto, isto é, um +estúpido, senão isto: «Tenho vontade de lágrimas». E esta frase, absolutamente literária, a +ponto de que seria afectada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer, refere absolutamente a +presença quente das lágrimas a romper das pálpebras conscientes da amargura líquida. +«Tenho vontade de lágrimas»! Aquela criança pequena definiu bem a sua espiral." + + + +" Sinto perante o rebaixamento dos outros não uma dor, mas um desconforto estético e uma +irritação sinuosa. Não é por bondade que isto acontece, mas sim porque quem se torna +ridículo não é só para mim que se torna ridículo, mas para os outros também, e irrita-me que +alguém esteja sendo ridículo para os outros, dói-me que qualquer animal da espécie humana +ria à custa de outro, quando não tem direito de o fazer. De os outros se rirem à minha custa +não me importo, porque de mim para fora há um desprezo profícuo e blindado. +Mais terrível de que qualquer muro , pus grades altíssimas a demarcas o jardim do meu ser, +de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e mantenho +outros. +Escolher modos de não agir foi semrpre a atenção e o escrúpulo da minha vida. +Não me submeto ao estado nem aos homens; resisto inertemente. O estado só me pode querer +para uma açcão qualquer. Não agindo eu, ele nada de mim consegue. Hoje já não se mata, e +ele apenas me pode incomodar; se isso acontecer, terei que blindar mais o meu espírito e viver +mais longe adentro dos meus sonhos. Mas isso não aconteceu nunca. Nunca me apoquentou o +estado. Creio que a sorte soube providenciar." + + + +" Tenho da vida uma náusea vaga, e o movimento acentua-ma." +"A vida, para mim, é uma sonolência que não chega ao cérebro. Esse conservo eu livre para +que nele possa ser triste." + + + +"Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo +não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? +Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha +alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele." +"Somos todos míopes, excepto para dentro. Só o sonho vê com o olhar." +"Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, +porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que +universo? O universo não é meu: sou eu." + + + +"A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera +da sensibilidade. Substitui a Inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, +despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a +vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial. +Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da +sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver." + + + +"Arcaram os vossos argonautas com monstros e medos. Também, na viagem do meu +pensamento, tive monstros e medos com que arcar. No caminho para o abismo abstracto, que +está no fundo das coisas, há horrores, que passar, que os homens do mundo não imaginam e +medos que ter que a experiência humana não conhece; é mais humano talvez o cabo para o +lugar indefinido do mar comum do que a senda abstracta para o vácuo do mundo." + + + +"Não me indigno, porque a indignação é para os fortes; não me resigno, porque a resignação é +para os nobres; não me calo, porque o silêncio é para os grandes. E eu não sou forte, nem +nobre, nem grande. Sofro e sonho. Queixo-me porque sou fraco e, porque sou artista, +entretenho-me a tecer musicais as minhas queixas e a arranjar meus sonhos conforme me +parece melhor a minha ideia de os achar belos. +Só lamento o não ser criança, para que pudesse crer nos meus sonhos." +"Eu não sou pessimista, sou triste." + + +"Omnia fui, nihil expedit - fui tudo, nada vale a pena." + + + +"Para mim, se considero, pestes, tormentas, guerras, são produtos da mesma força cega, +operando uma vez através de micróbios inconscientes, outra vez através de raios e águas +inconscientes, outra vez através de homens inconscientes." + + + +"Há uma erudição do conhecimento, que é propriamente o que se chama erudição, e há uma +erudição do entendimento, que é o que se chama cultura. Mas há também uma erudição da +sensibilidade." +"Condillac começa o seu livro célebre, «Por mais alto que subamos e mais baixo que +desçamos, nunca saímos das nossas sensações». Nunca desembarcamos de nós. Nunca +chegamos a outrem, senão outrando-nos pela imaginação sensível de nós mesmos. As +verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque assim, sendo deuses delas, as +vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram criadas. Não é nenhuma das sete +partidas do mundo aquela que me interessa e posso verdadeiramente ver; a oitava é a que +percorro e é a minha." + + + +"Há muito tempo que não escrevo. Têm passado meses sem que viva, e vou durando, entre o +escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não +repousa: no apodrecimento há fermentação." + + + +"É domingo e não tenho que fazer. Nem sonhar me apetece, de tão bem que está o dia. Gozo-o +com uma sinceridade de sentidos a que a inteligência se abandona. Passeio como um caixeiro +liberto. Sinto-me velho, só para ter o prazer de me sentir rejuvenescer." + + + +"O homem perfeito do pagão era a perfeição do homem que há; o homem perfeito do cristão a +perfeição do homem que não há; o homem perfeito do budista a perfeição de não haver +homem." +"Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de +todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido de que havia de ser o do texto; +mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos." + + + +"Não é fácil distinguir o homem dos animais, não há critério seguro para distinguir o homem +dos animais. As vidas humanas decorrem da mesma íntima inconsciência que as vidas dos +animais. As mesmas leis profundas, que regem de fora os instintos dos animais, regem, +também, de fora, a inteligência do homem, que parece não ser mais que um instinto em +formação, tão inconsciente como todo instinto, menos perfeito porque ainda não formado. + +«Tudo vem da sem-razão», diz-se na Antologia Grega." +"A Ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa +dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse «sei só que nada sei», e o estádio +marcado por Sanches, quando disse «nem sei se nada sei». O primeiro passo chega àquele +ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e atinge. O +segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos +homens o têm atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto +o sol e a noite sobre a vária superfície da terra." + + + +"Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de +perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me +e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma +cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma +para suspender. Este livro é a minha cobardia." + + + +"Escrevo demorando-me nas palavras, como por montras onde não vejo, e são meios-sentidos, +quase-expressões o que me fica, como cores de estofos que não vi o que são, harmonias +exibidas compostas de não sei que objectos. Escrevo embalando-me, como uma mãe louca a +um filho morto." +