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| "O coração, se pudesse pensar, pararia." | |
| "Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do | |
| abismo. Não sei onde me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma | |
| prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, | |
| porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao | |
| que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao | |
| que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até | |
| mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e | |
| canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero. | |
| Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que | |
| me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro | |
| dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se | |
| não o lerem, nem se entretiverem, será bem também." | |
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| "Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como | |
| sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a | |
| substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de | |
| milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança | |
| sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo | |
| mais porque vivo maior." | |
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| "Prefiro o Vasques homem meu patrão, que é mais tratável, nas horas difíceis, que todos os | |
| patrões abstractos do mundo." | |
| "Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros de outros em que escrituro, pelo | |
| tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sérgio, que faz guias de remessa um | |
| pouco para além de mim. Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar ou talvez, também, porque nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o | |
| dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como à grande indiferença das | |
| estrelas." | |
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| "Vejo-o [o patrão Vasques], vejo os seus gestos de vagar enérgico, os seus olhos a pensar para | |
| dentro coisas de fora, recebo a perturbação da sua ocasião em que lhe não agrado, e a minha | |
| alma alegra-se com o seu sorriso, um sorriso amplo e humano, como o aplauso de uma | |
| multidão." | |
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| "Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monótona e necessária, mandante e | |
| desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele é tudo para mim, por | |
| fora, porque a Vida é tudo para mim por fora. | |
| E, se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo | |
| andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, | |
| que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida | |
| sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente. Sim, | |
| esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos | |
| os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução." | |
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| "Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos | |
| gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; | |
| mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi | |
| a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas | |
| vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me | |
| respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com | |
| que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a | |
| narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância - irmãos | |
| siameses que não estão pegados." | |
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| "Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem | |
| importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto." | |
| "De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a | |
| compreensão profunda de estar sentindo...Uma inteligência aguda para me destruir, e um | |
| poder de sonho sôfrego de me entreter...Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, | |
| como a um filho vivo..." | |
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| "Tenho fome da extensão do tempo, e quero ser eu sem condições." | |
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| "Uns governam o mundo, outros são o mundo." | |
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| "Há em olhos humanos, ainda que litográficos, uma coisa terrível: o aviso inevitável da | |
| consciência, o grito clandestino de haver alma." | |
| "Sinto um frio de doença súbita na alma" | |
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| "Tinha-me levantado cedo e tardava em preparar-me para existir." | |
| "Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia desconhecida, um | |
| desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo. E quanto | |
| me debrucei da janela altíssima, sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente | |
| um daqueles trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, | |
| mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamentamente." | |
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| "São as pessoas que habitualmente me cercam, são as almas que, desconhecendo-me, todos os | |
| dias me conhecem com o convívio e a fala, que me põem na garganta do espírito o nó salivar | |
| do desgosto físico. É a sordidez monótona da sua vida, paralela à exterioridade da minha, é a | |
| sua consciência íntima de serem meus semelhantes, que me veste o traje de forçado, me dá a | |
| cela de penitenciário, me faz apócrifo e mendigo." | |
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| "Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da | |
| minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o | |
| que sente e o que vê." | |
| "E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir." | |
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| "A humanidade tem medo da morte, mas incertamente." | |
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| "E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, não sei o que penso nem o que sou." | |
| "Verifico que, tantas vezes alegre, tantas vezes contente, estou sempre triste." | |
| "Não vejo, sem pensar." | |
| "Não há sossego - e, ai de mim!, nem sequer há desejo de o ter." | |
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| "Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de | |
| roupa - não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio | |
| por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio. | |
| Há muitos em quem o desasseio não é uma disposição da vontade, mas um encolher de | |
| ombros da inteligência. E há muitos em quem o apagado e o mesmo da vida não é uma forma | |
| de a quererem, ou uma natural conformação com o não tê-la querido, mas um apagamento da | |
| inteligência de si mesmos, uma ironia automática do conhecimento. | |
| Há porcos que repugnam a sua própria porcaria, mas se não afastam dela, por aquele mesmo | |
| extremo de um sentimento , pelo qual o apavorado se não afasta do perigo. Há porcos de | |
| destino, como eu, que se não afastam da banalidade quotidiana por essa mesma atracção da | |
| própria impotência. São aves fascinadas pela ausência de serpente; moscas que pairam nos | |
| troncos sem ver nada, até chegarem ao alcance viscoso da língua do camaleão. | |
| Assim passeio lentamente a minha inconsciência consciente, no meu tronco de árvore do | |
| usual. Assim passei o meu destino que anda, pois eu não ando; o meu tempo que segue, pois eu | |
| não sigo." | |
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| "Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas | |
| frases simples de Caeiro, na referência natural do que resulta do pequeno tamanho de sua | |
| aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por | |
| isso a aldeia é maior que a cidade... | |
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| "Porque eu sou do tamanho do que vejo | |
| E não do tamanho da minha altura." | |
| Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda | |
| a metafísica que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler, chego à minha janela | |
| sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado | |
| cuja vibração me estremece no corpo todo. | |
| "Sou do tamanho do que vejo!"Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus | |
| nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. "Sou do | |
| tamanho do que vejo!" Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas até | |
| às altas estrelas que se reflectem nele e, assim, em certo modo, ali estão. | |
| E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com uma | |
| segurança que me dá vontade de morrer cantando. "Sou do tamanho do que vejo!" E o vago | |
| luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro do horizonte. | |
| Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvageria ignorada, de dizer | |
| palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade larga aos grandes espaços da | |
| matéria vazia. | |
| Mas recolho-me e abrando-me. "Sou do tamanho do que vejo!" E a frase fica sendo-me a | |
| alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a | |
| cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer." | |
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| "A solidão desola-me; a companhia oprime-me. A presença de outra pessoa descaminha-me | |
| os pensamentos; sonho a sua presença com uma distracção especial, que toda a minha atenção | |
| analítica não consegue definir." | |
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| "O isolamento talhou-me à sua imagem e semelhança. A presença de outra pesoa - de uma só | |
| pessoa que seja - atrasa-me imediatamente o pensamento, e, ao passo que no homem normal o | |
| contacto com outrem é um estímulo para a expressão e para o dito, em mim esse contacto é | |
| um contra-estímulo." | |
| "Os meus hábitos são da solidão, que não dos homens"; não sei se foi Rousseau, se Senancour, | |
| o que disse isto. Mas foi qualquer espírito da minha espécie - não poderia talvez dizer da | |
| minha raça." | |
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| "O vento levantou-se...Primeiro era como a voz de um vácuo...um soprar no espaço para | |
| dentro de um buraco, uma falta no silêncio do ar. Depois ergueu-se um soluço, um soluço do | |
| fundo do mundo, o sentir-se que tremiam vidraças e que era realmente vento. Depois soou | |
| mais alto, urro surdo, um chocar sem ser ante o aumentar nocturno, um ranger de coisas, um | |
| cair de bocados, um átomo de fim do mundo." | |
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| "Os Deuses, se são justos em sua injustiça, nos conservem os sonhos ainda quando sejam | |
| impossíveis, e nos dêem bons sonhos, ainda que sejam baixos." | |
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| "Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros | |
| com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas... | |
| Releio?Menti! Não ouso reler. Não posso reler. De que me serve reler? O que está ali é outro. | |
| Já não compreendo nada..." | |
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| "Ah, mas como eu desejaria lançar ao menos numa alma alguma coisa de veneno, de | |
| desassossego e de inquietação. Isso consolarme-ia um pouco da nulidade de acção em que | |
| vivo. Perverter seria o fim da minha vida. Mas vibra alguma alma com as minhas palavras? | |
| Ouve-as alguém que não só eu? | |
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| "Dói-me qualquer sentimento que desconheço; falta-me qualquer argumento não sei sobre o | |
| quê; não tenho vontade nos nervos. Estou triste abaixo da consciência. E escrevo estas linhas, | |
| realmente mal-notadas, não para dizer isto, nem para dizer qualquer coisa, mas para dar um | |
| trabalho à minha desatenção. Vou enchendo lentamente, a traços moles de lápis rombo - que | |
| não tenho sentimentalidade para aparar - , o papel branco de embrulho de sanduíches, que | |
| me forneceram no café, porque eu não precisava de melhor e qualquer servia, desde que fosse | |
| branco. E dou-me por satisfeito." | |
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| "A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência." | |
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| "Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência | |
| com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento. | |
| Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir | |
| não é mais que o alimento de pensar." | |
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| "Correr riscos reais, além de me apavorar, não é por medo que eu sinta excessivamente perturba-me a perfeita atenção às minhas sensações, o que me incomoda e despersonaliza. | |
| Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos perigos." | |
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| "Leve, como uma coisa que começasse, a maresia da brisa pairou sobre o Tejo e espalhou-se | |
| sujamente pelos princípios da Baixa. Nauseava frescamente, num torpor frio de mar morto. | |
| Senti a vida no estômago, e o olfacto tornou-se-me uma coisa por detrás dos olhos. Altas, | |
| pousavam em nada nuvens ralas, rolos, num cinzento a desmoronar-se para branco falso. A | |
| atmosfera era de uma ameaça de céu cobarde, como a de uma trovoada inaudível, feita de ar | |
| somente. | |
| Havia estagnação no próprio voo das gaivotas; pareciam coisas mais leves que o ar, deixadas | |
| nele por alguém. Nada abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o ar refrescava | |
| intermitentemente. | |
| Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta | |
| hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, | |
| para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar | |
| em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro. | |
| Tanta inconsequência em querer bastar-me! Tanta consciência sarcástica das sensações | |
| supostas! Tanto enredo da alma com as sensações, dos pensamentos com o ar e o rio, para | |
| dizer que me dói a vida no olfacto e na consciência, para não saber dizer, como na frase | |
| simples e ampla do livro de Job, "Minha alma está cansada de minha vida!" | |
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| INTERVALO DOLOROSO | |
| "Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha | |
| dor. | |
| Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque de quinta, com um dossel | |
| rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos | |
| sombrios da pouca água. | |
| Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a | |
| vida, eu não posso lhe tocar. | |
| Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço? e quem é triste não pode | |
| esforçar-se. Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria | |
| abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me. | |
| Quantas vezes me punge o não ser o manobrante daquele carro, o cocheiro daquele trem! | |
| qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de | |
| eu querê-la e se me penetra até de alheia! | |
| Eu não teria o horror à vida como a uma Coisa. A noção da vida como um Todo não me | |
| esmagaria os ombros do pensamento. | |
| Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda chuva contra um raio. | |
| Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gestos e actos. | |
| Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de | |
| angústia. | |
| Mesmo eu , o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas | |
| aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de quem me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a | |
| carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhêce-las durezas. Todos os | |
| pesos visíveis de objectos me pesam por a alma dentro. | |
| A minha vida é como se me batessem com ela." | |
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| "Meditei hoje, num intervalo de sentir, na forma de prosa de que uso. Em verdade, como | |
| escrevo? Tive, como muitos têm tido, a vontade pervertida de querer ter um sistema e uma | |
| norma. É certo que escrevi antes da norma e do sistema; nisso, porém, não sou diferente dos | |
| outros. | |
| Analisando-me à tarde, descubro que o meu sistemade estilo assenta em dois princípios, e | |
| imediatamente, e à boa maneira dos bons clássicos, erijo esses dois princípios em fundamentos | |
| gerais de todo estilo: dizer o que se sente exactamente como se sente - claramente, se é claro; | |
| obscuramente, se é obscuro; confusamente, se é confuso - ; compreender que a gramática é | |
| um instrumento, e não uma lei." | |
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| "Fazer qualquer coisa completa, inteira, seja boa ou seja má - e, se nunca é inteiramente boa, | |
| muitas vezes não é inteiramente má - , sim, fazer uma coisa completa causa-me, talvez, mais | |
| inveja do que outro qualquer sentimento. É como um filho: é imperfeita como todo o ente | |
| humano, mas é nossa como os filhos são. | |
| E eu, cujo espírito de crítica própria me não permite senão que veja os defeitos, as falhas, eu, | |
| que não ouso escrever mais que trechos, bocados, excertos do inexistente, eu mesmo, no pouco | |
| que escrevo, sou imperfeito também. Mais valeram pois, ou a obra completa, ainda que má, | |
| que em todo o caso é obra; ou a ausência de palavras, o silêncio inteiro da alma que se | |
| reconhece incapa de agir." | |
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| "Sumir-me-ei entra a névoa, como um estrangeiro a tudo, ilha humana desprendida do sonho | |
| do mar e navio com ser supérfluo à tona de tudo." | |
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| "Na falta de saber, escrevo; e uso os grandes termos da Verdade alheios conforme as | |
| exigências da emoção. Se a emoção é clara e fatal, falo, naturalmente, dos deuses e assim a | |
| enquadro numa consciência do mundo múltiplo. Se a emoção é profunda, falo, naturalmente, | |
| de Deus, e assim a engasto numa consciência una. Se a emoção é um pensamento, falo, | |
| naturalmente, do Destino, e assim a encosto à parede." | |
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| "Quando ponho de parte os meus artifícios e arrumo a um canto, com um cuidado cheio de | |
| carinho - com vontade de lhes dar beijos - os meus brinquedos, as palavras, as imagens, as | |
| frases - fico tão pequeno e inofensivo, tão só num quarto tão grande e tão triste, tão | |
| profundamente triste!... | |
| Afinal eu quem sou, quando não brinco? Um pobre órfão abandonado nas ruas das sensações, | |
| tiritando de frio às esquinas da Realidade, tendo que dormir nos degraus da Tristeza e comer | |
| o pão dado da Fantasia. De meu pai sei o nome; disseram-me que se chamava Deus, mas o | |
| nome não me dá idéia de nada. Ás vezes, na noite, quando me sinto só, chamo por ele e choro, | |
| e faço-me uma idéia dele a que possa amar...Mas depois penso que o não conheço, que talvez | |
| ele não seja assim, que talvez seja nunca esse o pai da minha alma... | |
| Quando acabará isso tudo, estas ruas onde arrasto a minha miséria, e estes degraus onde | |
| encolho o meu frio e sinto as mãos da noite por entre os meus farrapos? Se um dia Deus me | |
| viesse buscar e me levasse para a sua casa e me desse calor e afeição...Ás vezes penso isto e | |
| choro com alegria a pensar que o posso pensar...Mas o vento arrasta-se pela rua fora e as | |
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| folhas caem no passeio...Ergo os olhos e vejo as estrelas que não têm sentido nenhum...E de | |
| tudo isto fico apenas eu, uma pobre criança abandonada, que nenhum Amor quis par seu | |
| filho adoptivo, nem nehuma Amizade para seu companheiro de brinquedos. | |
| Tenho frio de mais. Estou tão cansado no meu abandono. Vai buscar, ó Vento, a minha Mãe. | |
| Leva-me na Noite para a casa que não conheci...Torna a dar-me, ó Silêncio imenso, a minha | |
| ama e o meu berço e a minha canção com que eu dormia..." | |
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| "O sonhador não é superior ao homem activo porque o sonho seja superior à realidade. A | |
| superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que o | |
| sonhador extrai da vidaum prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de | |
| acção. Em melhores e muito mais directas palavras, o sonhador é que é o homem de acção. | |
| Sendo a vida essencialmente um estado mental, e tudo, quanto fazemos ou pensamos, válido | |
| para nós na proporção em que o pensamos válido, depende de nós a valorização. O sonhador | |
| é um emissor de notas, e as notas que emite correm na cidade do seu espírito do mesmo modo | |
| que as da realidade." | |
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| "Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram!" | |
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| "Em mim foi sempre menor a intensidade das sensações que a intensidade da consciência | |
| delas. Sofri sempre mais com a consciência de estar sofrendo que com o sofrimento de que | |
| tinha consciência. | |
| A vida das minhas emoções mudou-se, de origem, para as salas do pensamento, e ali vivi | |
| sempre mais amplamente o conhecimento emotivo da vida. | |
| E como o pensamento, quando alberga a emoção, se torna mais exigente que ela, o regime de | |
| consciência, em que passei a vive o que sentia, tornava-se mais quotidiana, mais epidérmica, | |
| tornava-se mais titilante a maneira como sentia." | |
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| "Somos quem não somos e a vida é pronta e triste." | |
| "Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam em nós, na noite de sermos, pelas | |
| praias que nos sentimos nos alagamentos da emoção! Aquilo que se perdeu, aquilo que se | |
| deveria ter querido, aquilo que se obteve e satisfez por erro, o que amamamos e perdemos e, | |
| depois de perder, vimos, amando por tê-lo perdido, que o não havíamos amado; o que | |
| julgávamos que pensávamos quando sentíamos; o que era uma memória e críamos que era | |
| uma emoção; e o mar todo, vindo lá, rumoroso e fresco, do grande fundo de toda a noite, a | |
| estuar fino na praia, no decurso nocturno do meu passeio à beira-mar ... | |
| Quem sabe sequer o que pensa ou o que deseja? Quem sabe o que é para si-mesmo?" | |
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| "Tão supérfluo tudo! Nós e o mundo e o mistério de ambos." | |
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| " O pensamento colectivo é estupído porque é colectivo: nada passa as barreiras do colectivo | |
| sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo. | |
| Na mocidade somos dois: há em nós a coexistência da nossa inteligência própria, que pode ser | |
| grande, e a da estupidez da nossa inexperiência, que forma uma segunda inteligência inferior. | |
| Só quando chegamos a outra idade se dá em nós a unificação. Daí a acção sempre fruste da | |
| juventude - devida, não à sua inexperiência, mas à sua não-unidade." | |
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| " Sou daquelas almas que as mulheres dizem que amam, e nunca reconhecem quando | |
| encontram, daquelas que, se elas as reconhecessem, mesmo assim não as reconheceriam. Sofro | |
| a delicadeza dos meus sentimentos com uma atenção desdenhosa. Tenho todas as qualidades, | |
| pelas quais são admirados os poeta românticos, mesmo aquela falta dessas qualidades, pela | |
| qual se é realmente poeta romântico. Encontro-me descrito (em parte) em vários romances | |
| como protagonista de vários enredos; mas o essencial da minha vida, como da minha alma, é | |
| não ser nunca protagonista." | |
| "O cais, a tarde, a maresia entram todos, e entram juntos, na composição da minha angústia. | |
| As flautas dos pastores impossíveis não são mais suaves que o não haver aqui flautas e isso | |
| lembrar-mas." | |
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| " Cada qual tem o seu álcool. Tenho álcool bastante em existir. Bêbado de me sentir, vagueio | |
| e ando certo. Se são horas, recolho ao escritório como qualquer outro. Se não são horas, vou | |
| até o rio fitar o rio, como qualquer outro. Sou igual. E por detrás de isso, céu meu, constelome às escondidas e tenho o meu infinito." | |
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| " Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um | |
| conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos. | |
| Isto é verdade em toda a escala do amor. No amos sexual buscamos um prazer nosso por | |
| intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso | |
| dado por intermédio de uma ideia nossa. O onanista é objecto, mas, em exacta verdade, o | |
| onanista é a perfeita expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana. | |
| As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as | |
| palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No | |
| próprio ato em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois «amo-te» ou pensamno e sentem-no por troca, e cada um quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até, | |
| porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstracta de impressões que constitui a | |
| actividade da alma." | |
| "É de compreender que sobretudo nos cansamos. Viver é não pensar." | |
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| "Para o esteta, as tragédias são coisas interessantes de observar, mas incomodas de sofrer. O | |
| próprio cultivo da imaginação é prejudicado pelo da vida. Reina quem não está entre os | |
| vulgares. | |
| Afinal, isto bem me contentaria se eu conseguissepersuadir-me que esta teoria não é o que é, | |
| um complexo barulho que faço aos ouvidos da minha inteligência, quase para ela não | |
| perceber que, no fundo, não há senão a minha timidez, a minha incompetência para a vida." | |
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| ESTÉTICA DO ARTIFÍCIO | |
| " A vida prejudica a expressão da vida. Se eu tivesse um grande amor nunca o poderia contar. | |
| Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente | |
| existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim. Vivo-me | |
| esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia ao meu | |
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| ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico | |
| empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não | |
| sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir, é - crede-me bem - para não perturbar | |
| as linhas feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu | |
| cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não | |
| posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares | |
| frescos e das luzes francas - onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada | |
| beleza." | |
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| "Assim organizar a nossa vida que ela seja para os outros um mistério, que quem melhor nos | |
| conheça, apenas nos desconheça de mais perto que os outros. Eu assim talhei a minha vida, | |
| quase que sem pensar nisso, mas tanta arte institiva pus em fazê-lo que para mim próprio me | |
| tornei uma não de todo clara e nítida individualidade minha." | |
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| "A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida." | |
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| "A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa. Dizem que não há | |
| nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a | |
| mão sem literatura, o gesto, ascendemente enrolado em ordem, com que aquela figura | |
| abstracta das molas ou de certas escadas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos | |
| lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificuldade uma espiral: é um círculo que | |
| sobe sem nunca conseguir acabar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim, | |
| porque supõe que definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso | |
| dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um circulo virtual que se desdobra a subir sem | |
| nunca se realizar: Mas não, a definição ainda é abstracta. Buscarei o concreto, e tudo será | |
| visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma. | |
| Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda | |
| quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal, na sua realidade directa; os campos, | |
| as cidades, as ideias, sao coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa complexa sensação de | |
| nós mesmos. Sâo intransmissíveis todas as impressões salvo se as tornarmos literárias. As | |
| crianças são muito literárias porque dizem como sentem e não como deve sentir quem sente | |
| segundo outra pessoa. Uma criança, que uma vez ouvi, disse, querendo dizer que estava à | |
| beira de chorar, não «Tenho vontade de chorar», que é como diria um adulto, isto é, um | |
| estúpido, senão isto: «Tenho vontade de lágrimas». E esta frase, absolutamente literária, a | |
| ponto de que seria afectada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer, refere absolutamente a | |
| presença quente das lágrimas a romper das pálpebras conscientes da amargura líquida. | |
| «Tenho vontade de lágrimas»! Aquela criança pequena definiu bem a sua espiral." | |
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| " Sinto perante o rebaixamento dos outros não uma dor, mas um desconforto estético e uma | |
| irritação sinuosa. Não é por bondade que isto acontece, mas sim porque quem se torna | |
| ridículo não é só para mim que se torna ridículo, mas para os outros também, e irrita-me que | |
| alguém esteja sendo ridículo para os outros, dói-me que qualquer animal da espécie humana | |
| ria à custa de outro, quando não tem direito de o fazer. De os outros se rirem à minha custa | |
| não me importo, porque de mim para fora há um desprezo profícuo e blindado. | |
| Mais terrível de que qualquer muro , pus grades altíssimas a demarcas o jardim do meu ser, | |
| de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e mantenho | |
| outros. | |
| Escolher modos de não agir foi semrpre a atenção e o escrúpulo da minha vida. | |
| Não me submeto ao estado nem aos homens; resisto inertemente. O estado só me pode querer | |
| para uma açcão qualquer. Não agindo eu, ele nada de mim consegue. Hoje já não se mata, e | |
| ele apenas me pode incomodar; se isso acontecer, terei que blindar mais o meu espírito e viver | |
| mais longe adentro dos meus sonhos. Mas isso não aconteceu nunca. Nunca me apoquentou o | |
| estado. Creio que a sorte soube providenciar." | |
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| " Tenho da vida uma náusea vaga, e o movimento acentua-ma." | |
| "A vida, para mim, é uma sonolência que não chega ao cérebro. Esse conservo eu livre para | |
| que nele possa ser triste." | |
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| "Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo | |
| não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? | |
| Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha | |
| alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele." | |
| "Somos todos míopes, excepto para dentro. Só o sonho vê com o olhar." | |
| "Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, | |
| porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que | |
| universo? O universo não é meu: sou eu." | |
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| "A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera | |
| da sensibilidade. Substitui a Inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, | |
| despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a | |
| vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial. | |
| Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da | |
| sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver." | |
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| "Arcaram os vossos argonautas com monstros e medos. Também, na viagem do meu | |
| pensamento, tive monstros e medos com que arcar. No caminho para o abismo abstracto, que | |
| está no fundo das coisas, há horrores, que passar, que os homens do mundo não imaginam e | |
| medos que ter que a experiência humana não conhece; é mais humano talvez o cabo para o | |
| lugar indefinido do mar comum do que a senda abstracta para o vácuo do mundo." | |
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| "Não me indigno, porque a indignação é para os fortes; não me resigno, porque a resignação é | |
| para os nobres; não me calo, porque o silêncio é para os grandes. E eu não sou forte, nem | |
| nobre, nem grande. Sofro e sonho. Queixo-me porque sou fraco e, porque sou artista, | |
| entretenho-me a tecer musicais as minhas queixas e a arranjar meus sonhos conforme me | |
| parece melhor a minha ideia de os achar belos. | |
| Só lamento o não ser criança, para que pudesse crer nos meus sonhos." | |
| "Eu não sou pessimista, sou triste." | |
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| "Omnia fui, nihil expedit - fui tudo, nada vale a pena." | |
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| "Para mim, se considero, pestes, tormentas, guerras, são produtos da mesma força cega, | |
| operando uma vez através de micróbios inconscientes, outra vez através de raios e águas | |
| inconscientes, outra vez através de homens inconscientes." | |
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| "Há uma erudição do conhecimento, que é propriamente o que se chama erudição, e há uma | |
| erudição do entendimento, que é o que se chama cultura. Mas há também uma erudição da | |
| sensibilidade." | |
| "Condillac começa o seu livro célebre, «Por mais alto que subamos e mais baixo que | |
| desçamos, nunca saímos das nossas sensações». Nunca desembarcamos de nós. Nunca | |
| chegamos a outrem, senão outrando-nos pela imaginação sensível de nós mesmos. As | |
| verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque assim, sendo deuses delas, as | |
| vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram criadas. Não é nenhuma das sete | |
| partidas do mundo aquela que me interessa e posso verdadeiramente ver; a oitava é a que | |
| percorro e é a minha." | |
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| "Há muito tempo que não escrevo. Têm passado meses sem que viva, e vou durando, entre o | |
| escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não | |
| repousa: no apodrecimento há fermentação." | |
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| "É domingo e não tenho que fazer. Nem sonhar me apetece, de tão bem que está o dia. Gozo-o | |
| com uma sinceridade de sentidos a que a inteligência se abandona. Passeio como um caixeiro | |
| liberto. Sinto-me velho, só para ter o prazer de me sentir rejuvenescer." | |
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| "O homem perfeito do pagão era a perfeição do homem que há; o homem perfeito do cristão a | |
| perfeição do homem que não há; o homem perfeito do budista a perfeição de não haver | |
| homem." | |
| "Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de | |
| todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido de que havia de ser o do texto; | |
| mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos." | |
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| "Não é fácil distinguir o homem dos animais, não há critério seguro para distinguir o homem | |
| dos animais. As vidas humanas decorrem da mesma íntima inconsciência que as vidas dos | |
| animais. As mesmas leis profundas, que regem de fora os instintos dos animais, regem, | |
| também, de fora, a inteligência do homem, que parece não ser mais que um instinto em | |
| formação, tão inconsciente como todo instinto, menos perfeito porque ainda não formado. | |
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| «Tudo vem da sem-razão», diz-se na Antologia Grega." | |
| "A Ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa | |
| dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse «sei só que nada sei», e o estádio | |
| marcado por Sanches, quando disse «nem sei se nada sei». O primeiro passo chega àquele | |
| ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e atinge. O | |
| segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos | |
| homens o têm atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto | |
| o sol e a noite sobre a vária superfície da terra." | |
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| "Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de | |
| perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me | |
| e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma | |
| cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma | |
| para suspender. Este livro é a minha cobardia." | |
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| "Escrevo demorando-me nas palavras, como por montras onde não vejo, e são meios-sentidos, | |
| quase-expressões o que me fica, como cores de estofos que não vi o que são, harmonias | |
| exibidas compostas de não sei que objectos. Escrevo embalando-me, como uma mãe louca a | |
| um filho morto." | |
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